Ainda vou parar esse mundo e descer dele...
Uma delicia... dos infernos, verão carioca e engarrafamento...
Mais um dia voltando pra casa depois do trabalho,
combinação perfeita para o seu final de tarde.
Sinto escorrer pelas costas cada gota de suor...
Uma delícia...
E cá estou eu, esse ai, sentado a duas fileiras atrás...
Pelo menos o ônibus não está cheio e estou sentado.
Apoio à cabeça no encosto do banco da frente e
tento não pensar em matar algum ser humano...
Quase em transe mediúnico pelo para-e-anda do ônibus,
percebo alguém sentando ao meu lado e depois de um tempo,
abro os olhos e para minha surpresa, vejo um lindo par de pés femininos,
tamanho 37, sem joanetes, numa sandália de couro...
Ela começa a brincar com os dedos dos pés, um misto de dança e balé... Respiro fundo e volto a sentar normalmente.
Ajeito a roupa e discretamente direto, olho pra ela.
Pronto, fudeu... Apaixonei-me novamente, para variar, e, de novo...
Ela é linda, dos cabelos morenos e dos pés perfeitos!
Agora não preciso de mais nada, apenas uma conversa,
e com aquele engarrafamento, será fácil...
Por onde começar?
Sou tão bom como isso... Igual a um elefante descendo a ladeira...
Falar do tempo?, perguntar as horas?, reclamar do engarrafamento?
Tudo clichê demais... Pensa cara, pensa!!!
Percebo-a me olhando e quando respondo de volta,
um pequeno sorriso forma-se em seu rosto...
Está aí a minha chance, vou balbuciar qualquer palavra,
resmungar qualquer coisa, se ela me olhou e sorriu, tá no papo...
Mas o momento que seria o momento do momento de virar e dizer a brilhante composição vogal “Oi”, ela levanta e toca a cigarra para descer do ônibus. Ali ficamos, trocando olhares, ela de pé me observando e eu com cara de mané sentado, babando de volta pra ela...
Não sei como, mas ainda eu consegui dizer um “adeus”...
Sim, ela olhou para mim, olhou para minha boca enquanto eu falava “adeus”, como se estivesse devorando-a, mas no entanto, sorrindo, desceu do ônibus...
E eu fiquei sentado lá, tenho certeza que era eu!!!, quando vi a porta do ônibus se fechar...e pelos vidros da porta em frente aonde eu estava sentado, a vejo levantar a mão, tocar os lábios nas pontas dos dedos e mandar um beijo para mim...
Caralho!!! o que eu ainda estou fazendo sentado no ônibus!?!?!
Levanto como um foguete, começo a gritar para o motorista abrir a porta, pois queria descer urgente, caso de amor a primeira vista!!!. Saio destrambelhado, tropeçando nas pessoas pelo caminho, tentando ainda encontrá-la pela rua, e a vejo dobrando a esquina...
Quando estou a poucos metros dela, começo a declamar em voz alta tudo quanto é tipo de poesias, poemas, frases, palavras, que tentassem demonstrar que eu não era maluco e sim apenas doido por ela, e que aquela situação nunca tinha acontecido, que eu me sentia absurdamente feliz e querendo muito conhecê-la!
Só que ela, de costas e olhando sempre pra frente, não expressou qualquer sentimento, ficando imune as minhas palavras...Eu não acreditei, tinha decido do ônibus, aberto todas as defesas e ela lá andando e nem se importando para o que eu estava dizendo...
Quando eu ia segurá-la pelo braço e tentar falar, olho no olho, tudo o que tinha dito antes, ela entra num prédio e a partir desse momento eu simplesmente congelo...ficando sem reação...e, numa manobra de entortar zagueiros, viro de costas e volto para minha vida covarde...
Sem acreditar direito no que acabara de acontecer,
olho para trás e leio o letreiro da fachada do prédio novamente:
Associação de Surdos e Mudos do Rio de Janeiro.